quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Parque da Liberdade - A Praça Que Veio do Sertão


 Uma Fortaleza Menina




O amor em forma de educação (O Estado)



 Uma pequena cidade de 35 mil habitantes, lá nos tempos distantes da metade do século XIX, que crescia às margens de um riacho. Sem infraestrutura, com um comércio em torno de uma praça de areia e de duas igrejas. Assim era Fortaleza por volta de 1850, com o córrego do Pajeú descendo do “Oiteiro” (Outeiro, Aldeota) com suas curvas, a Praça Municipal (do Ferreira) e as Igrejas do Rosário e de São José (Sé). Muita criação animal para alimentar o povo, praticamente sem fiscalização, mas para tal precisava de água doce, que não fosse do corrente que passava límpido nos quintais das casinhas, por isso a necessidade de uma lagoa “mais distante”.

 No final da Rua do Cajueiro, atual General Bezerril, pelo lado sul da cidade de então, havia currais e chiqueiros onde os animais se alojavam, debaixo de cajueiros, antes do abatimento,  e ali mesmo o seu comércio, em meio ao matagal. Uma dessas árvores era tão majestosa que emprestava o nome à rua. Sob ela trabalhava o marchante Fagundes, que morava ao seu lado. Conta-se que, passando por ali, a cavalo, o capitão-mor Luiz da Motta Feo e Torres, caiu seu chapéu, e exigiu que Fagundes o entregasse. O açougueiro sequer o respondeu. Como vingança, o governador tentou por duas vezes derrubar o cajueiro, traído pela solidariedade recebida pelo outro. Colegas de corte e demais comerciantes se armaram para defender a árvore. E assim o cajueiro manteve-se imponente.

Certa vez, ocorreu que, como animal tem sentimento, um garrote tratou de fugir na noite que antecedia à sua morte, embrenhando-se na mata. Somente muitas horas depois foi recapturado, o que lhe valeu, pelo menos, o nome do logradouro: Lagoa do Garrote. Nascia o "bairro" Alagoa do Garrote. 

Lagoa do Garrote - A Rainha do Nosso Parque



Gov. Liberato Barroso, prefeito Cassimiro Montenegro,
Dr. João Guilherme Studart, entre outros. (O Malho, 1915)
 O crescimento populacional de Fortaleza associava-se mais às secas, que levavam para a sua periferia os flagelados, povo sem instrução, letras e noção de destino, mas disposto a trabalhar para garantir um pouco de sustento. Todos careciam do líquido precioso, ainda que sem tratamento específico, daí a necessidade de criação de poços para o consumo, como chafarizes, servindo como alternativa às ausências e competitividade frente à excelência da Cacimba do Povo, de Jacarecanga, a do Beco do Cacimbão (que ainda se encontra na Praça do Ferreira) e o da bica, ambos no lado velho da cidade, prestativos para todas as necessidades. Foi quando, em 1848, providenciaram um cacimbão no Largo do Palácio (da Luz), isso bem depois do “Açude do Garrote”, construído por José Martiniano de Alencar quando presidente da província (1834 - 1837). Segundo Artur Eduardo Benevides, que foi Príncipe dos Poetas, a cidade contava com um rio tributário desaparecido por conta dos aterros. Nascia na Praça Clóvis Beviláqua, cortava as ruas a partir da Senador Pompeu até desembocar no Garrote. Ja a outra vazão vinha do velho Marajaik (Pajeú) a partir do Outeiro (Aldeota).

 Porém, já naquele ano a nossa lagoa, usada também para banhos do povo, muitas vezes sem roupas, já não era tão acolhida, estando suja e imprópria ao consumo humano. O presidente Fausto Augusto de Aguiar fez a solicitação de construção de um cacimbão no Garrote, então “de água pantanosa”, a qual abastecia a cidade, e outro no Campo da Pólvora (Praça dos Mártires) por 88$280 réis. Os jornais liberais, de oposição, não perdoavam, fazendo cobranças, como lemos em O Cearense de 20 abril 1848: “Lamentamos que continue a população desta cidade a servir-se da lagoa pantanosa do Garrote, e se não tenham podido ainda realizar as ordens do presidente sobre o melhoramento das cacimbas. A lagoa que bebe o povo não é objeto de pouca monta, como alguém pensa, as febres gástricas estão continuando, e podem ser atribuídas à má qualidade da água. Portanto, é mister cuidar seriamente disso”. Providenciou-se 60$000 réis a Luiz de França Tavares para os cinco serventes que construíram as duas cacimbas no Garrote.



Como Parque da Independência em 1935 (Foto Manoel Guilherme)


 Mesmo diante dos perigos de contaminação, por décadas as feiras de porco, carneiro, peru e hortaliças se estabeleceram no local. Mas diante das denúncias de infestação de doenças causadas pela poluição da lagoa, no início de 1861 o Dr. Joaquim Antônio Alves Ribeiro foi contratado pela província, constatando que nas águas verdes claras e fedorentas existiam matérias estranhas “levadas pelos ventos”, e pelo microscópio verificou-se quantidade enorme de corpúsculos vivos e mortos que povoavam aquele ambiente. Temperatura elevada de 25°C. O jornal O Cearense recomendou à municipalidade “a remoção de mananciais, rasgando o sangradouro até o nível fundo, jogando cal vivo e enxugando para matar as espécies de animais microscópicos que ali se desenvolveram”.



1938. Linda imagem de J. A. Vieira

 Em maio de 1861, parecer do Dr. Ribeiro assim respondeu à pergunta do presidente da província, Manuel Antônio Pinto Duarte de Azevedo: “As águas estagnadas do açude do “Pageú” podem prejudicar o estado sanitário da capital incontestavelmente. O estado atualmente arruinado das suas águas é prejudicial à salubridade pública. Os exames cuidadosamente feitos indicam que convém fazer nesta conjuntura para não privar o publico da utilidade que o açude presta, e torná-lo de maneira que suas águas estagnadas não sejam prejudicadas por meio de suas emanações à salubridade pública. Aproveito a oportunidade para também dizer o meu pensamento relativamente à existência da Lagoa do Garrote porque as suas águas se acham ainda e piores condições do que as do açude, e como tenho estudado ambas localidades, julgo mui conveniente unir a este parecer as minhas ideias relativas ao estado atual, visto que as águas estagnadas da dita lagoa também influem sobre a salubridade pública, e por isto também precisam de remédio”.

  8 de julho de 1862. Ofício da Câmara ao Exmo Presidente: “A Lagoa do Garrote está sendo hoje lugar de despejo de imundícies, de sorte que a água exala um fétido extraordinário, que não pode deixar de resultar em grande mal para esta cidade na quadra presente. Portanto, pede esta câmara a V. Exc. para que tomando este negócio em consideração, dê suas providências para que seja desinfetado aquele lugar, aterrando-se ou esgotando-se a dita lagoa”.  Conclui-se que tanto o Pajeú como a Lagoa do Garrote estavam contaminadas, estando as suas águas não recomendadas para o consumo. Porém, nada de respostas das autoridades.

  Em 1 de agosto de 1865 foi regulamentado o serviço de limpeza do centro histórico, aos cuidados do fiscal Joaquim de Macedo Maciel, estando aquele logradouro agendado para as sextas feiras. Naquela época, do seu lado sul, existia um terreno mais valorizado que o da lagoa, onde se erguia a Capela de Nossa Senhora das Dores, para a qual a Assembleia Provincial aprovou a doação de 1:000$000 (um conto de réis), inaugurada dois anos após. Na Praça da Liberdade, exatamente no mesmo local em que surgiu, em 25 de março de 1886, a Igreja do Coração de Jesus.

 José Júlio de Albuquerque Barros, presidente da província, mandou arborizar a praça, assim como a Figueira de Melo, a Boulevard Duque de Caxias e a Conde D’Eu em 1880, ano em que , naquele largo, construiu-se um prédio para guardar equipamentos militares aos cuidados do alferes Berlamino Accioly de Vasconcelos.


  Parque da Liberdade pelas Mãos de Trabalhadores Famintos


 O paulista Caio Prado assumiu o governo cearense (1888 - 1889) decidido a valorizar a Lagoa do Garrote, tornando-a um centro de lazer para os fortalezenses. Em termos financeiros deveria se preocupar com os fornecedores e com algumas desapropriações, afinal mão de obra barata não faltava. Tratava-se de mais uma época de seca, a nona apenas naquele século de um total de onze. Não foi tão cruel quanto a de 1877 - 1881, o que não impediu uma nova “invasão” da capital por retirantes, seja a pé, seja sobre animais ou nos vagões da Estrada de Ferro Baturité (EFB). Muitos, infelizmente, não chegaram ao destino. Numa atitude mais política que humana, as autoridades indicaram cem desses flagelados para dar início aos serviços. O crítico O Cearense protestou, pedindo mais trabalhadores em obras públicas tendo em vista a gravidade social, com pessoas morrendo de fome, em detrimento dos enormes gastos. Caio Prado duplicou esse número, porém, em julho de 1889, atrasou os pagamentos de modo que em agosto um operário morreu por falta de alimentação. Os liberais encamparam, então, uma série de denúncias contra o presidente. Passaram a chamar a obra de Largo dos Escândalos.


Cartão Aba Film (1937)
Veio o período republicano e tomou posse o primeiro governante da era, o tenente-coronel Luís Antônio Ferraz, ao qual os liberais esperavam em vão se aliar. Coronel Ferraz acabou inaugurando o Parque da Liberdade, outrora Lagoa do Garrote, que a partir de 16 de abril projetou-se como Largo da Liberdade, no dia 13 de maio de 1890. Homenageava a data de libertação dos escravos no Brasil (1888). O responsável pelas obras foi o engenheiro militar Dr. Romualdo de Barros, diretor de Obras de Socorro de Fortaleza. Ele construiu no lago tanques para armazenar água enviada de uma cacimba; edificou um coreto, assentos de bancos de madeira e, ao longo das alamedas, combustores para iluminação, aproveitando a pequena ilha para edificar um templo dedicado a Cupido, Deus do Amor, simbolizado da imagem de uma criança com asa, munida de arco e flecha.

Às 9 horas, ao som da banda do Corpo de Segurança Pública, o inédito parque, um magnífico lugar voltado para diversões decorado com bandeiras, com balanços e trapézios, foi entregue diante de uma multidão. À tardinha, das 17 horas às 19 horas, novamente a banda de música, agora para dançantes.





Postal dos Anos 1920






1890: o primeiro café 
 Na ocasião, o industrial José Borges Gurjão presenteou o complexo com um canindé e uma arara para a coleção de aves ali existentes, como um pavão de bela linhagem, dando origem ao único zoológico da cidade. Já o Comendador Francisco Coelho foi um dos indenizados por ceder terreno para a extensão do parque, que só seria concluído em 1902, com a construção do muro. Iniciava-se uma reurbanização do Centro, ao mesmo tempo em que em julho era inaugurado ao lado da lagoa o Café Cascata. Pertencente ao engenheiro Romualdo de Barros, contava com a atração de uma pequena orquestra, entre 17 e 20 horas, além de passeio de escaler e exercícios diversos, destacando-se o tiro-a-alvo. Obras de ajustes continuaram, como retiradas de casebres, e mais uma vez trabalhadores sofrendo com atrasos salariais.




As Bandas nas Praças


.Fortaleza contava com dois belos espaços para entretenimentos: a Praça dos Mártires e a Praça da Liberdade. Em  31 ago 1890, no Largo da Liberdade, a banda de música do Corpo de Segurança Pública tocou as seguintes peças:

I - Marcha: Progresso da República.
II - Dobrados.
III - Fantasia da Ópera Trovador.
IV - Sinfonia da Ópera O Guarani.
V - Aliser, a Grande Valsa.
VI - Valsa Gato Preto.
VII - Variação da Ópera Sonâmbula, no clarinete.
VIII - Polka.


Da mesma forma o 11° Batalhão de Infantaria, que, presente em outras ocasiões, brindou com “Valsa da Esperança”, “Valsa Paula Castro”, “Ermelinda Polka” e “Fantasia Moisés”.

O Povo Coçando a Cabeça


 No dia 31 de outubro de 1890, a Secretaria do Conselho de Intendência Municipal publicou polêmica resolução com mudanças radicais, como nomes de praças, entre as quais a Dr. José Júlio no lugar da Praça da Liberdade (Coração de Jesus). José Júlio Albuquerque, sobralense, antigo interventor federal. A Praça do Mercado, antiga Carolina (atual Waldemar Falcão) passou a José de Alencar; Marquez do Herval a do Patrocínio (atual José de Alencar), e a gloriosa Praça do Ferreira no lugar de Praça Municipal, outrora Pedro II, entre outras. Mas o interessante foi a alternativa encontrada para driblar as constantes alterações nos nomes dos logradouros. Conforme o Artigo 1°: “Fica suprimida a denominação existente das ruas da cidade e substituída por numeração pela forma assim denominada: da Rua Formosa (Br. Do Rio Branco) para o nascente todas as ruas serão ímpares, e para o poente pares”. Desse modo, a Rua Formosa passou a se chamar N° 1, a Major Facundo N° 3 e a Rua da Boa Vista (Floriano Peixoto) N° 5, assim como a Senador Pompeu N° 2 e General Sampaio/Visconde de Cahuype (Av. da Universidade) N° 4. Não vingou por muito tempo.


 Parque da Independência



Parque da Independência (Verdes Mares, 1932)

 Durante o governo de Justiniano de Serpa e do intendente (prefeito) Ildefonso Albano, em 7 de setembro de 1922, lembrando o centenário da independência, o Parque da Liberdade passou a se chamar Parque da Independência. O logradouro passou por remodelação, surgindo um novo aspecto do muro, do piso e do portão principal, onde foi fixada na entrada, sobre o mesmo, a imagem de bronze do índio se libertando, quebrando a corrente. Nos dias atuais o mesmo encontra-se rachado e sem um braço, infelizmente.



Festa da criançada em 1939 (Unitário)
 1934. O interventor federal Carneiro de Mendonça fez o projeto da Cidade da Criança, tendo o seu sucessor, Meneses Pimentel, professor de carreira, dotado verbas que a viabilizaram, sendo a sua instalação em 1936. Assim, no dia 26 de maio de 1937, o intendente Raymundo de Alencar Araripe e o interventor Meneses Pimentel, durante as comemorações pelos dois anos das suas administrações, inauguraram a Cidade da Criança, denominação criticada pelos saudosistas. Como novidades, quatro modernas construções, abrigando uma inovadora escola para crianças de 3 a 13 anos, iniciando com 150 alunos.

 Num pavilhão remodelado surgiram a biblioteca e a cantina, enquanto em outro os banheiros com chuvisco. No terceiro pavilhão ficou o Jardim de Infância, onde se ensinava canto, balé, penetrando no desenvolvimento das artes. Ao lado deles os parques de diversões com balanços e deslizadores. Lembrando também as inovações charmosas, como a Gruta dos Amores e a Gruta do Cupido. Aos cuidados da diretora Zilda Martins Rodrigues, educadora renomada, escritora, e esposa do advogado e jornalista José Martins Rodrigues, fundador do jornal O Estado. As professoras, como Isaura Araújo, Francisca Pedreira, Erzila Mendonça, Elizabeth Osório e Diva Moura, no entanto, já reclamavam do pequeno espaço dos prédios e de carências de materiais.

 No ano seguinte, Raymundo Alencar criou, segundo o Decreto 367 de 28 de janeiro, o Serviço de Educação Infantil, à frente o secretário Hugo Catunda, outra diretora, Alba Frota e de sua auxiliar Ailza Ferreira Costa, fortalecendo o ensino pedagógico com orientação sociológica e elevando a idade dos alunos até 15 anos. No Parque de Brinquedos, no complexo do Parque Recreio, foram adicionados olas, gangorras e deslizadores, além de serviço de vigilância a cargo de três mulheres. Em 1939 já contava com 409 alunos e expandia os jardins, dispondo de sala de projeções, ao passo que em 1940 foi inaugurado o restaurante. O período da tarde era voltado para práticas de lazer: futebol, voleibol, patinação, ping-pong e ciclismo, por exemplo, aos cuidados de outra equipe pedagoga. Curiosamente, raro na época, tratava-se de um esforço para levar às crianças não apenas o ensino escolar avançado, mas a convivência de seres de origem social pobre à mesma relação de convivência com as das melhores escolas particulares.



Aulas de balé na escolinha. (O Estado, 1949)


A Volta do Parque da Liberdade


 Em 1948, entretanto, a Lei 84, publicada em 22 de outubro, durante a gestão municipal de Acrísio Moreira da Rocha, restaurou-se a denominação Parque da Liberdade. Contudo, não tratou a contento da sua preservação. Somente na gestão municipal de Cordeiro Neto ocorreu o saneamento do lago e algumas melhorias. Anexou-se na Ilha do Cupido (ou dos Amores) uma imensa cruz de madeira, ajardinamento e a construção de um auditório para apresentações artísticas e visuais. O prefeito o reinaugurou no dia 20 de dezembro de 1961.


Cezar Telles, o restaurador, de quem sentimos falta. (Tribuna do Ceará, 1977)


 Numa realização aplaudida durante administração do prefeito Evandro Ayres de Moura, em 1977, ocorreu a restauração das imagens  comandada pelo escultor Augusto Cezar Telles Marinho. Diante dos sacrifícios, como subir uma escada de onze metros cedida pelo Corpo de Bombeiros, o artista honrou o seu talento, dando à imagem do índio a sua característica de origem, que embora verde foi decido pelo restaurador mudar para marrom. Assim o fez com o cupido, feito de mármore, com o arco e as asas; a criança Inocência, a mãe e o casal de crianças, fundidas em bronze, nas suas cores naturais, vindas de Milão, Itália.

Após a desativação da escola, funcionou no local a Fundação da Criança e da Família Cidadã (FUNCI), ligada à prefeitura, e atualmente comporta parte da Guarda Municipal. Em 2019, depois de bom período de obras, incluindo derrubada de parte do muro, concluiu-se uma nova drenagem. Aguardamos maior valorização daquele símbolo de Fortaleza, que ostenta, numa área de 26.717 metros quadrados. Ali reluz o carinho e a paixão do cearense, das vítimas das secas aos mais abastados. Carece, e urge, de exploração e de direitos voltados à sociedade.

                                                                                                         (J. Lucas Jr)


 Fontes: Jornais O Cearense, O Povo, O Estado e Tribuna do Ceará.



1938 com a velha Ig. do Coração de Jesus (Foto M. Guilherme)





Parque da Liberdade e Igreja do Sagrado Coração de Jesus, do livro "The State of Ceará" (Chicago 1893)