sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Fortaleza 1937 - Bairro Outeiro

Bairros de Fortaleza - Jornal O Estado, 19 de dezembro de 1937
Oiteiro Por Henrique da Veiga


Palácio do Plácido de Carvalho - Av. S. Dumont
Até poucos anos - menos de um decênio - o Oiteiro era o mais desprezado dos bairros de Fortaleza, especialmente na parte denominada a rigor – Adeiota. Aquilo, além do Colégio Militar era quase tudo mataria, terreno baldio e pobres casas de gente humilde. Para além do castelo do Plácido, então, parecia um deserto, sendo temerário o trânsito à noite. A má fama vinha desde o tempo em que o capitão-mor interino, ou seja, o governador de então (1708), Carlos Ferreira, ao ir ver uma casa que mandara preparar para hospedagem do engenheiro militar Diogo da Silva Veloso, recebeu dois balaços de espingarda, que lhe iam dando cabo da vida, como desejava o almoxarife José Mendes Lima. Ótimo, apenas, para pic-nics nas safras de caju. E assim passou o delicioso bairro quase dois séculos.

Mas em 1895, uma voz se ergueu pela imprensa para protestar contra aquele injustificável abandono. Antônio Bezerra iniciara na “República” do dia 9 de março a sua famosa dérie de artigos sob título “Ligeira descrição sobra a cidade de Fortaleza”, transcritos, depois, na revista do Instituto do Ceará (Ano IX, Tomo IX), que lhe valeu, em parte, humorísticas observações. Nessa altura, um “oiteirense”, sob o pseudônimo de “Alguém”, saiu em campo, pelas colunas da própria “República”, escrevendo seis artigos sobre o bairro, que naquele tem tempo pleiteava, sobretudo, uma linha de bonde de burros para o qual os habitantes se quotizaram, abrindo a lista o Dr. Epaminondas da Frota, com 2:000$.

Ig. Cristo Rei e Convento dos Jesuítas (Pça B. Constant)
Assim escrevia “Alguém”: “Agora que cearenses ilustres, sinceramente dedicados aos interesses desta terra discutem e tratam já da sua história e progresso moral, já dos melhoramentos que se fazem necessários ao aformoseamento e salubridade da capital, é justo que nos lembremos do bairro do Oiteiro, o melhor e mais desprezado na distribuição dos benefícios públicos. É tempo de varrer esse anátema , que parece pesar sobre o Oiteiro, condenando-o à privação das demais vantagens e conforto de que gozam os outros centros da população”. E termina o primeiro artigo: “O OITEIRO HÁ DE SER CENTRO O CENTRO DA VIDA LOCAL E CONFORTÁVEL DA VIDA DE FORTALEZA, SUAS CONDIÇÕES CLIMATÉRICAS ABRIR-LHE-ÃO EM BREVE O CAMINHO AO MAIS ALTO ALDEAMENTO”.
Note-se bem a previsão do articulista, a verdadeira profecia , a verdadeira profecia, que o tempo se encarregou de positivar. Tinha razão. Quarenta e dois anos depois, o Oiteiro tornou-se o bairro elegante, aristocrático, e, a par disso, o bairro das Letras. Basta olhar para os clichês que aí vão. Transformou-se, como um encanto, com especialidade na Adeiota, justamente onde quase eram matas. De norte a sul rasga-se, espaçosa e arborizada, a Avenida Santos Dumont, toda, quase sem solução de continuidade, um renque maravilhoso de custosos e artísticos “bungalows” e encantadoras vilas. Novas ruas e avenidas transversais e laterais se abrem, já ostentando construções que obedecem ao mesmo ritmo de beleza arquitetônica, de conforto, em estilo moderno. Temos, neste caso: ruas Gonçalves Ledo, João Cordeiro, Antônio Augusto, Barão de Aracati, Carlos Vasconcelos, Monsenhor Bruno e Av. Barba Alardo; ruas Rodrigues Júnior, D. Luís, 25 de Março e Governador Sampaio, onde, aliás, começa a zona do Oiteiro. As duas praças intercaladas - Figueira de Melo e Benjamin Constant - já se povoam de também novos e elegantes prédios.

Bangalôs da Aldeota. Foram-se!
Mas, sobretudo, se notabilizam: a primeira, por estarem ali encravados a Escola Normal Pedro II, o Colégio da Imaculada Conceição e a Escola Jesus, Maria e José, onde funcionam várias associações religiosas e o Cine Paroquial (cinema falado), e a segunda: empolgante prédio do Colégio Militar, o convento das Carmelitas e o convento dos Jesuítas, havendo, ainda, na Avenida Santos Dumont, o Colégio “Coração Eucarístico”, o Ginásio São João e a Escola Doméstica, esta funcionando no majestoso castelo de Plácido de Carvalho.


Bangalôs em 1937
Dois magníficos templos católicos, um na Figueira de Melo - a igreja do Pequeno Grande, como é ordinariamente conhecida, e a de Cristo Rei, Benjamin Constant, fazem o orgulho do Oiteiro, neste tocante, por sua vez. Do que é a primeira, assim se exprimiu, em 1907, o dr. Soriano Albuquerque: “O Ceará ostenta em sua formosa capital um templo que é um verdadeiro primor de arquitetura, sendo o estilo uma evocação suave de longínquas eras e a construção o mais brilhante atestado do quanto pode o esforço que brota das almas persistentes. É o templo da Imaculada Conceição, erguido simplesmente às custas de donativos por essas mulheres admiráveis, as Irmãs de Caridade. O interior da igreja deslumbra. O olhar abrange o recinto num êxtase contemplativo, tal o encanto que oferece”.

Fonte na Pça Benjamim Constant
Isto, sem nos afastarmos da Santos Dumont, porque todo o Oiteiro, hoje, é uma cidade dentro da cidade capital. Vilas, “chalets”, “bungalows” surgem de todos os lados, todo dia, sem exagero de afirmativa. E por isto, ali, onde há dez anos se oferecia um palmo de terra por 10$, adulando-se para comprar, não se adquire, hoje, meio palmo por menos de 200$. O Oiteiro empolga. Foi vidente o articulista de 1895. Os clichês que fixam alguns dos seus aspectos dizem tudo.


A casinha da "Aldiota". O dono: "Não vendo!"
Dentre, porém, de toda aquela suntuosidade de construções, um caso vem quebrar a harmonia do conjunto. Na Avenida Barba Alardo, no meio do calçamento, está fincada uma casinha de palha. Velha, esburacada, acachapada, gotejante. O meio fio de pedra da Municipalidade chegou ali, parou, passou adiante rumo aos novos bungalows, e a casinha ficou, desafiando o progresso e desdenhando das ricas e altaneiras. O dono mantém-se na atitude de a não vender. Quer é ali. É sua, como seu é o terreno. Não se dispõe dele por preço algum. É assim um símile do moleiro de Sans-Souci, faltando apenas, no quarto, a figura de Frederico II para se curvar ante o imperativo da evocação da Lei. Resta saber se a nossa Prefeitura está pelo caso de temer os juízes de Berlim.


Nota do Blog:
- A Av. Barba Alardo, que homenageava o governante cearense no período imperial, era a atual Av. Rui Barbosa.
- Fato curioso o funcionamento de cinema falado na Escola Jesus, Maria e José, cujo prédio as autoridades esqueceram.
- A praça do Colégio Militar, Benjamim Constant, mudou de nome para Praça da Bandeira em 1960, mais conhecida como Praça do Cristo Rei. A outra, no Centro, famosa com esse nome, chama-se Praça Clóvis Beviláqua.
- O texto deixa bem claro que a bela Igreja do Pequeno Grande pertence ao Colégio da Imaculada Conceição. E também que a Escola Doméstica funcionou no Palácio do Plácido, demolido, hoje Centro de Artesanato Luíza Távora..
Fotos: J. O./Aba Film - O Estado






quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Fortaleza - Os Prédios que Marcaram

O QUE CERTOS PRÉDIOS RECORDAM


Jornal O Estado. Fortaleza, 5 de dezembro de 1937 - Por HENRIQUE DA VEIGA
“Não se embarca mais escravo!” -  Morada da Justiça - “Forno da Padaria” - Telégrafos e Telefones - A Tragédia do Bacamarte - Já foi Palácio - Onde nasceu o gênio da “Electra” - A Famosa Botica.


Matéria de Henrique da Veiga - 1937
Não faz um mês, Felix Lima escreveu em “Caras e Caretas”, de Buenos Aires, interessantes recordações de “La Calle Larga de La Recoleta”, um encanto de reminiscências da antiga capital portenha. São gratas essas recordações. Revivem locais, figuras, fatos do passado, às vezes de decisiva influência no futuro. Em todos os países, mesmo ante o imperativo do urbanismo iconoclasta, procura-se, quanto possível, respeitar lugares, prédios, objetos ligados à história. Na França, dizem que se fez uma curva na rua para evitar o decepamento de uma árvore, sob cuja copa o autor de “Os Miseráveis” costumava escrever. Na Inglaterra, a casa em que Newton nasceu foi demolida, mas no local ficou uma placa lembrando a “Newton House”. Assim por diante...
 Nós, também, da relatividade histórica da vida fortalezense, temos alguma coisa que deve ser lembrada, como por exemplo:


 TEATRINHO DO GRITO LIBERTADOR


1881 - No antigo Teatro São José, o grito pela abolição
Essas casas conjugadas na rua Senador Pompeu, n°s 941 e 953 tiveram a sua época de ouro há meio século, quando da eclosão do grande movimento cívico da abolição que, sacudindo a alma nacional, de norte a sul, conquistou para o Ceará um lugar de relevo na História. Nessas duas casas fundou-se o teatrinho “São José”, onde foram levadas à cena peças que faziam vibrar de entusiasmo os nossos maiores, como “Os Sinos de Cornevile” e outros. Não obstante, as pinturas novas conservam os antigos característicos arquitetônicos, e uma delas, a de n° 941, ostenta o mesmo portão largo, de estilo, por onde passou toda uma geração vibrante e patriota, que se recreava com a arte de Talma, desconhecendo os truques do cinema e a história, nem sempre edificante, dos “astros” e das “estrelas” pagos de Hollywood. Não guarda a crônica desse teatrinho, entretanto, senão um fato cujas consequências, do ponto de vista sócio-político-econômico, foram deveras marcantes na vida cearense.

 Ali, na noite de 26 de janeiro do 1881, José do Amaral e outros próceres abolicionistas firmaram um pacto, que foi o passo decisivo para a repressão à escravocracia, de que “no porto do Ceará não embarca mais escravos!” É posto logo em prática, logo na manhã seguinte, pelo grande chefe do movimento manumissor , com o valioso concurso de Nascimento: José Napoleão, José Barros Silva e outros, segundo reza a Ata da Sessão Magna da Perseverança e Povir”. Foi, pois, dessa casa que partiu o grito de rebeldia à negregada instituição legal de se comprar e vender gente como se compra e vende irracionais.

 E a propósito de teatro e abolição, justo é assinalar, também, a existência de outro - o teatrinho, “S. Luís”- cuja sede eram uma casinha onde é hoje a residência do sr. Ulisses Borges, antiga do dr. João Moreira, esquina vis-à-vis com a Santa Casa. Ali, a ideia manumissora teve, igualmente, impulsos precipitantes, e tal era o entusiasmo que a peça “A Cabana do Pai Tomaz”, encenada pela Companhia Guimarães, teve 52 apresentações! A separação das casas foi feita pelo seu proprietário, o Barão de Ibiapina. Assim divididas rendiam mais...


O Palácio da Justiça


Trib. de Relação

 O Tribunal da Relação sempre funcionou em casa assombrada. Instalado a 3 de fevereiro de 1874, no Paço da Assembleia Legislativa, passou a funcionar no sobrado n° 28 da rua Senador Pompeu, transferindo-se a 17 de abril de 1875 para esse que aí está, à rua Major Facundo 156, onde é hoje, no baixo, a casa comercial de J. Felinto & Cia, e nos altos uma pensão. Nesse velho sobrado, de propriedade do cel. José Gentil, o Tribunal esteve por cerca de 40 anos, por ali passando figuras de alta projeção no mundo jurídico, na Magistratura, no Direito. Verdadeiros luminares da Ciência de Ulpiano, como o são hoje - vale dizê-lo – os seus sucessores na distribuição da Justiça. Ali funcionou, também, a Prefeitura.




O telégrafo



Telégrafos: olhando para a Sé
A história dos Correios e Telégrafos no Ceará está resumida numa edição especial de “O Nordeste” quando da sua inauguração, na Praça Capistrano de Abreu, no majestoso palácio de cimento e vidro, mandado construir pelo ministro José Américo.
 Apesar disso, poucos se lembram que o telégrafo, inaugurado em Fortaleza em 17 de fevereiro de 1878, com uma linha para Aracati, o foi nessa casa de esquina da Praça da Sé, onde hoje funciona um bilhar, a primeira, lado ímpar da rua Castro e Silva, n° 5. Desse tempo, ainda existe um funcionário, Alfredo Barbosa Leite.





O Forno da Padaria


A casa, à rua Barão do Rio Branco, sob n° 1001, tem sua história na crônica literária do Ceará. Foi aí que se instalou e funcionou por algum tempo a mais brilhante, fecunda e original sociedade de letras do norte do país - a” Padaria Espiritual”, tão decantada, citada e glorificada através de notáveis trabalhos de Rodrigues de Carvalho, José Luís de Castro, Ronald de Carvalho, Leonardo Mota e outros, e vivida ainda hoje na pessoa, por todos os títulos, de Antônio Sales, que é a crônica, em si mesmo, de todo o movimento intelectual do Ceará nos últimos decênios. Tinha o prédio o n° 105, e as paredes ostentavam alegorias com os nomes dos “padeiros”, traçados pelo rutilante pincel de Luís Sá, o “Corregio Del Sarto” da turma. A venda do “pão” dava para as despesas do aluguel do “forno”, e o proprietário, o Bruno, antigo dono do hoje Casa Parente (edifício), por gostar de outras “massas” pôs a Padaria no olho da rua. E a consciência burguesa, com o automatismo do caiador, fez passar mão de cal pelas paredes, apagando para sempre a obra de arte e inteligência de Luís Sá. Hoje, no ano de 1937, o “forno” é depósito de móveis. Mas mesmo assim merecia uma placa que indique às novas gerações onde nasceu e viveu por algum tempo uma das sociedades que mais influíram no movimento intelectual do país.


Telefones


Na antiga Casa Confúcio, 1° telefone
A 11 de fevereiro de 1883, sendo presidente da Província o depois Barão de Guapará, que, aliás, nada tem com o peixe, inaugurava-se “a primeira linha telefônica, ficando acertada entre o estabelecimento comercial de Confúcio Pamplona, à rua Major Facundo 59, e a casa de José Joaquim de Farias, no largo da Alfândega”, diz o Barão de Studart e adianta o “ Cearense”: “Por essa ocasião, trocaram-se diversas felicitações entre negociantes e particulares, tendo funcionado com a maior regularidade os aparelhos sentados”. Este “sentados” não sei de onde vem, e quanto à marca dos aparelhos nenhuma linha noticiário da época. O que posso garantir é que muita gente, ao chegar o auditor ao ouvido e escutar a voz que vinha lá da Praça da Alfândega, há de ter experimentado a mesma sensação de espanto de D. Pedro II quando examinava, na Exposição de Filadélfia, o “invento falante” de Graham Bell. A Casa Confúcio fez, portanto, papel que vai fazer aquele elegante prédio da Praça dos Voluntários, que, dizem, servirá de testa da futura Prefeitura. Segundo pude colher, por alguém autorizado, o Confúcio era ali onde está a casa, também de ferragens, de J. Torquato & Cia.


Facundo



A residência de João Facundo tornou-se Casa Villar

Não se pense que vou tratar da obra de Mitre. Refiro-me ao maior vulto da política provincial cearense nos primórdios do Império: o major João Facundo de Castro Meneses, assassinado traiçoeiramente,  a tiros de bacamarte, na noite de 8 de dezembro de 1841, ao que se diz, a mandado da esposa do presidente José Joaquim Coelho, português que morreu Barão da Vitória, não sei por que cargas d’água. Sei - e já estive com os volumosos autos do processo em mãos - que, à boquinha da noite, quando se festejava o dia de Nossa Senhora da Conceição, na Prainha, Facundo mal chegava à janela de sua residência, ali onde estão as casas Vilar e Singer, quando o primeiro tiro roncou. E não dera tempo a indagar da esposa sobra a segunda bacamartada, prostrava-o, fulminando-o e ferindo a sua mártir companheira. Ao assassinos, Jacarandá e Cia, estavam escondidos num matagal ali onde é hoje o Banco Caixeiral, mais ou menos. Nem é bom imaginar o que foi aquela noite sinistra, na pacatez provincial de Fortaleza de então.


VOVÔ


Pl. do Comandante das Armas
Prédio histórico
Esse é o vovô dos prédios outrora públicos. Vem do tempo colonial e já teve honras de Palácio com “P” grande. Era ali que residiam ao comandantes das Armas, que é, assim como quem diz, a segunda pessoa do governo, o comandante em chefe das forças militares. Um deles foi o coronel Silva Paulet, que traçou a planta de Fortaleza, substituído em 1824 por famoso português, tenente -coronel Conrado Jacob de Niemeyer, o carrasco de Pessoa Anta, Bolão, Carapinima e Padre Mororó. Fica na Praça da Sé, e conquanto esteja com o frontal modificado, todo o resto fala de três séculos. Hoje, só o Palácio do Governo e a Intendência pegam parelhas com ele em vetustez e sentido histórico.




O BOTICÁRIO


Antônio Rodrigues Ferreira é um nome que não passará na história fortalezense tais os serviços prestados à nossa capital, que lhe prestou a justa homenagem de assim chamar a nossa Praça-coração. Era português,  boticário e político, mas, mais político que boticário. A sua botica era ali onde é hoje a “Farmácia Galeno”, e nessa farmácia toda noite reunia-se a rodinha - o Banco de então – dos correligionários gerais. Ficava em frente o célebre “Beco do Cotovelo”, e muitas conversas dos próceres políticos pegadas do tal beco. Dizem até que, de certa feita, o padre Verdeixa, disfarçado de vendedor de capim, arreou a carga defronte à rodinha e ouviu tudo, repetindo no dia seguinte, pelo jornal, as histórias escutadas dos adversários.


Rua da Palma (Major Facundo). Olhando para o Beco do Cotovelo, a Botica do Ferreira, depois Farmácia Galeno


Fotos: Jornal O Estado ( de José Martins Rodrigues) - 1937



quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Siupé - Igreja Histórica de São Gonçalo foi Depredada

Desaparecem dez imagens de Igreja e padre é acusado. A denúncia é dos moradores do Distrito de Siupé.

Jornal O Povo, 12 de janeiro de 1987. Texto: Nonato Albuquerque. Fotos: Jorge Henrique


Templo do século XVIII. Foto de Robério Soares (2011)
 No Ceará, pouca gente sabe da existência de um lugar chamado Siupé. É um povoado distante 90 quilômetros da Capital, próximo a  São Gonçalo do Amarante, e com uma população em torno de duas mil pessoas. A referência comum  é feita pela EMCETUR – Empresa Cearense de Turismo, que inclui em seu mapa turístico a visita obrigatória à Igreja de Nossa Senhora da Soledade. Quem se der a esse trabalho terá uma surpresa nada agradável. O péssimo estado de conservação do templo e a depredação de peças consideradas valiosas do seu patrimônio, como imagens do século XVIII e sacrário, estão preocupando os fiéis da localidade que exigem das autoridades religiosas uma ação mais enérgica.
 “Está tudo abandonado, roubaram quase tudo”, acusa Teresinha Uchôa, natural da localidade e que, retornando numa visita, deparou-se com o estado deplorável em que se encontra a igrejinha. Ela, na opinião de Teresinha, é a sustentação do sentido religioso de um povo que vive unicamente para “trabalhar e rezar”.

 A responsável pelo cartório local, Raimunda Correia Soares, confirma a depredação de que foi vítima a igreja, durante vários anos. Não existe nenhum banco para que os católicos possam assistir à missa que, geralmente, é celebrada uma vez por mês pelo vigário de São Gonçalo. É a própria comunidade que se encarrega, nos demais dias da semana, das tarefas de realizar a celebração do ato religioso. “Nós celebramos a missa até naquela parte em que podemos fazer”, explica dona Mirandinha, considerando que a Igreja é a primeira grande responsável pelo estado atual do templo.

 PATRIMÔNIO ARRASADO


 
Imagem do descaso: mão no chão (O Povo, 1987)
Pelo que ela pôde se lembrar, a Igreja de Nossa Senhora da Soledade já viveu tempos mais felizes. No passado havia um total de dez imagens de santos, contando com a padroeira, todas em estilo original e de grande valor histórico. “Um padre chegou a dizer-me, certa feita, que aquelas coroas das imagens eram de ouro puro”. Não só a coroa hoje como as imagens hoje desapareceram. Peças trabalhadas como o sacrário que foi instalado desde a fundação da igrejinha sumiram sem que fossem dadas explicações nenhuma à comunidade. Os moradores de Siupé contam que esses desaparecimentos não se devem apenas a atos de vândalos. O agricultor José Flor de Alcântara recorda, por exemplo, que na época em que ocorriam mais saques aos templos religiosos do interior, a população inteira de Siupé chegou a fazer vigílias noturnas para evitar o roubo de imagens caríssimas do templo. “Na época, o povo se cansou de passar noite e madrugada aqui em frente à igreja com medo que os ladrões viessem roubar as imagens”. Tanto zelo e preocupação, porém, resultaram em nada. A igrejinha de Nossa Senhora da Soledade não resistiu à sanha dos depredadores e todo o seu patrimônio foi devastado. Restam hoje uma imagem da padroeira - “a verdadeira foi levada para Roma pelos padres”, cita a professora Isabelle Brás Peixoto da Silva, numa monografia sobre a localidade, elaborada pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará – uma de Nossa Senhora das Dores e um Coração de Jesus, arrasado pelo tempo e pela má conservação.


O PADRE O QUE DIZ

 A revolta maior da população é com relação ao descaso das próprias autoridades religiosas. Conta Teresinha Uchôa que, nos dia de sua infância, a igrejinha era bem conservada. Havia o bancos que desaparecerem, “altares com cada uma das imagens, uma grade trabalhada que separava o altar mor dos fiéis, o sacrário e um armário com várias imagens. Arrasaram tudo”, denuncia ela, interessada em saber o destino a que foi dado esse patrimônio.

 Teresinha Uchôa conta que tudo começou com a venda das terras da igreja pelo padre Francisco Araújo Lopes a grupos particulares. Eles prometeram fazer muitos benefícios para a região, como a construção de escolas, indústrias de beneficiamento de coco e outros melhoramentos. Nada foi feito. Temendo serem desalojados de seus locais de trabalho, os agricultores se reuniram e protestaram. Criou-se um caso nacional que levou o INCRA a desapropriação de 3.600 hectares para o assentamento de 402 famílias. O decreto de desapropriação foi assinado pelo então presidente João Figueiredo no dia 23 de abril de 1980, sendo publicado no Diário Oficial exatamente dois dias depois.

 As terras da igreja de Siupé, segundo moradores, foram vendidas por “uma mixaria”: CR$ 200 milhões e o dinheiro depositado em banco pelo padre Francisco Araújo Lopes. “Ele contou ao povo que não tocou em nenhum tostão, que iria apenas retirar os juros para o emprego nas obras de restauração da igreja”, conta dona Mundinha Correia. Nada foi feito, acrescenta Teresinha Uchôa, muito embora o sacerdote tenha constatado num relatório enviado à Arquidiocese, e que ela (Teresinha) chegou a ler, gastos com a mudança do teto, a construção de um piso, a pintura “e outros melhoramentos, que nunca chegaram a acontecer”.

 O padre Lopes, hoje vigário do Monte Castelo, conta que tudo isso “é conversa fiada”. “Eu reformei o teto, comprei o carro da paróquia e isso tudo não tem mais graça. Já prestei contas com a Arquidiocese”, defende-se o sacerdote, classificando a atitude dos moradores de “falta de mentalidade. Eles deveriam era ajudar a reformar a igreja”. Isso parece que tem sido feito pela comunidade.


1987: abandono ( Foto O Povo)


NINGUÉM SE ENTENDE


 Ao contrário do que afirma padre Lopes, as obras de restauração da igreja foram patrocinadas pela Associação Comunitária de Siupé, dirigida pelo suplente de vereador Zeferino Correia de Souza, que garante ter construído o piso, feito pinturas das paredes e, com a ajuda dos moradores, providenciado o retalhamento da igreja , para evitar alagamentos na época invernosa. Mesmo assim, a situação atual da igreja é constrangedora. A confirmar o próximo inverno e o que resta em seu interior está sujeito às chuvas, devido ao número enorme de goteiras.

 “O padre Lopes diz que fez alguma coisa pela igreja, nunca. O que ele fez com o dinheiro da venda das terras, que deixou 402 famílias no desamparo, ninguém sabe. Empregá-lo na igreja é faltar com a verdade”. Para ele e os demais moradores, o patrimônio construído pela igreja durante esse tempo todo era vultoso. “Até gado em grande quantidade tinha, que o povo oferecia à Nossa Senhora. Tudo foi arrasado”, conta um irmão de Zeferino.

 A comunidade faz questão de ressaltar que não existe nenhum sentimento de revanche contra atos praticados pelo sacerdote naquela localidade. Eles querem ser informados da verdade, “pois o padre anda dizendo que fez melhoramentos na igreja, o que é uma mentira deslavada”. Espera que as autoridades religiosas façam uma investigação. “Até o padre que vem aqui, uma vez por outra, fala, fala, fala e ninguém entende nada”, diz outro morador, queixando-se do celebrante Pedro Areta, um estrangeiro que é o responsável pela paróquia. “O povo não sabe nem português, aí vem um sacerdote que celebra em castelhano”, reclama outro morador.

LENDA DA IGREJA


 A história de Siupé está muito ligada aos indígenas do tronco Anacé, segundo historiadores. Em 1563, o português Felipe Coelho Moraes chegou ao lugar, iniciando o seu povoamento. Por ali passaram também os responsáveis pela primeira reforma do templo. A Igreja de Nossa Senhora da Soledade foi edificada e decorada pelo bacharel Manoel da Cunha Figueiredo em 1865 e teve como primeiro vigário o padre Joaquim Alves Ferreira.
 A localidade de Siupé é constituída de agricultores que vivem das culturas de subsistência, como milho, feijão, coco, mandioca, açúcar, batata e castanha. 80 por cento dos moradores vivem da agricultura. A construção da igreja, segundo os mais antigos, se deve a uma aparição de Nossa Senhora num pé de gameleira, local onde foi levantada a capela. Nela, estão enterrados muitos padres, e, segundo alguns, o fundador de Sobral.
                                                                                                                                          Jornal O Povo

Nota do Blog:

Segundo o blog SGA Notícias, com fontes do pesquisador Robério Soares:


 Acredita-se que a construção da igreja de Siupé tenha se dado entre 1730 e 1737, nas terras doadas ao Sargento-mor Antônio Marques Leito, pois a partir de 1737 foram encontradas referências a atos litúrgicos como batizados, casamentos, enterros nos livros de assentamento da igreja. Aqui foram sepultados vários sacerdotes e pessoas importantes do passado, como o Padre José Moreira de Sousa, seu irmão Padre Francisco Moreira de Sousa, além de Antônio Rodrigues Magalhães, fundador da cidade de Sobral.
Uma das mais antigas povoações do estado, o distrito de Siupé tem muita história do Ceará e de S. G. Amarante. As primeiras informações do homem branco datam de 1653. Ao tempo das primeiras penetrações no território cearense, as terras onde hoje se localiza o município de São Gonçalo do Amarante eram habitadas por índios de várias nações, principalmente anacés – origem de Anacetaba – primeiro nome de São Gonçalo. As investidas do português visando o povoamento da região tiveram início com a concessão das primeiras Sesmarias na década de 1680, onde surgiram alguns núcleos populacionais, como São Gonçalo e Siupé.


domingo, 8 de janeiro de 2017

Trairi - O Velho Barracão


 
Trairi, 5/2/1881. Documento oficial

5 DE FEVEREIRO DE 1881. A Lei


Antes do atual prédio do Mercado Público, inaugurado na primeira gestão de Manoel Barroso Neto, e hoje um exemplo de vergonha pelo descaso, de imoralidade, a feira de Trairi, chamada de Barracão, localizava-se nas proximidades da praça José Granja, ao lado das mercearias do Sr. Carlos Almeida e do Sr. Antônio Nery, depois sapataria do Sr. Assis Lagoa, pai do Sr. Pedro Ivo, que lá se estabelece. É com prazer que publicamos a Lei que regulamentava o seu comércio, nos tempos do primeiro intendente, coronel Antônio Barroso de Souza, nosso primeiro administrador (1863), bem antes do primeiro prefeito oficial, coronel Francisco Ribeiro da Cunha (1896).  Chamam atenção a sua rigidez, com exigências como o uso de ferramentas de cortes, horários de funcionamento, sob pena de multas pesadas. A Câmara centralizava, intermediando o comércio de gado e cereais com os vendedores. A moeda da época, reis, tinha como pronúncia “réis”.

Conta o historiador Antônio Bezerra, em seu livro "Notas de Viagem" (1889), após honrosa visita a Trairi (1885): “Além do ribeiro, rumo de poente, está construído o barracão de peixe muito abundante nesse ramo de negócio, em consequência da aproximação da costa que fornece de instante e instante o alimento preciso da maior parte da população. Uma buzina de contínuo anuncia a chegada de novo carregamento mais fresco, mais apetitoso. Além do que se consome diariamente, exporta o Trahiry porção de peixe para o mercado da capital”.




Área onde se localizava o Barracão


 A CÂMARA MUNICIPAL DA VILLA DE TRAHIRY RESOLVE:

ART. 1°: O BARRACÃO DA FEIRA E OS AÇOUGUES LICENCIADOS PELA CÂMARA SÃO OS ÚNICOS LUGARES  EM QUE É PERMITIDO A VENDA  DE CARNE VERDE OU SECA DE GADO ABATIDO PARA O CONSUMO PÚBLICO. O MESMO BARRACÃO É O ÚNICO LUGAR DESTINADO PARA A VENDA DE PEIXE, E OS RESPECTIVOS ALPENDRES E PRAÇAS PARA A VENDA DE CEREAIS. O INFRATOR PAGARÁ MULTA DE MIL REIS.

ART. 2°: OS VENDEDORES DO GÊNERO ACIMA MENCIONADOS PAGARÃO 600 REIS POR CABEÇA DE GADO BOVINO, 200 REIS POR QUALQUER OUTRA RÊS, 40 REIS POR CARGA DE CEREAIS E 10 REIS POR KILOGRAMA DE PEIXE.

ART. 3°: OS CEREAIS SÓ PODERÃO SER VENDIDOS POR ATACADO DEPOIS DE ESTAREM EXPOSTOS DO RETALHO, NA FEIRA, ATÉ AS DUAS HORAS DA TARDE, SOB PENA DE DOIS MIL REIS DE MULTA.

ART. 4°: DEPOIS DE MEIO DIA NÃO É PERMITIDO A VENDA DE CARNE VERDE, SENDO O DONO OBRIGADO A SALGÁ-LA IMEDIATAMENTE E NÃO A PODERÁ VENDER SENÃO DEPOIS  DE EXPOSTAS AO SOL  POR ESPAÇO DE DOZE HORAS, PELO MENOS. O INFRATOR DESTAS DISPOSIÇÕES INCORRERÁ EM MULTA DE 5.000 REIS.

ART. 5°: É PROIBIDO PISAR SAL DENTRO DO MERCADO SOB PENA DE 1.000 REIS DE MULTA.

ART. 6°: NOS CORTES DE RESES DE CONSUMO SÓ É PERMITIDO O CORTE DE SERRA E FACA SEM PONTA, SOFRENDO  A MULTA DE 2.000 REIS PARA QUEM EMPREGAR INSTRUMENTOS DIVERSOS.

ART. 7°: É PROIBIDO O USO DE CEPOS PARA O CORTE DE CARNE, OS QUAIS SERÃO SUBSTITUÍDOS POR BANCAS, QUE DEVERÃO SER PERFEITAMENTE LAVADAS TODOS OS DIAS. O INFRATOR SE OBRIGARÁ A MULTA DE 4.000 REIS.

PAÇO DA CÂMARA MUNICIPAL DA VILLA DE TRAHIRY, EM SESSÃO EXTRAORDINÁRIA DE 5 DE FEVEREIRO DE 1881.


ANTÔNIO BARROSO DE SOUZA - PRESIDENTE


 O Barracão em 1934

 Infelizmente, o rigor da norma não durou muito. No dia 13 de outubro de 1934, o jornal O Nordeste lamentou o estado de abandono não apenas da feira como de toda a localidade, protestando contra o fato de o prefeito residir em Paracuru:

 "O Mercado está ameaçando ruína; o teto quase a abater e tudo em estado de absoluto desasseio. As balanças têm como pesos pedaços de tijolos. Uma lástima! Convém, volte o prefeito, que mora em Paracuru, as suas vistas para tamanho desmantelo.

 É preciso que as autoridades cuidem do interesse coletivo! Somente assim se compreende governo útil ao povo, que paga impostos e quer ver o bom emprego das rendas públicas".

Obs.: Em 1934, Trairi pertencia administrativamente a Paracuru. No ano seguinte, passou para Anacetaba (hoje São Gonçalo do Amarante).




Mercado de Trairi, 2017. Símbolo de descaso