quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Clóvis Beviláqua. O Maior Civilista sem Casaca




Dr. Clóvis e D. Amélia (da família)
De origem italiana, Clóvis Beviláqua (Bevilacqua) nasceu em Viçosa do Ceará no dia 4 de outubro de 1859. Fez os estudos primários em Sobral e os seguintes em Fortaleza (Ateneu Cearense e Liceu) e Rio de janeiro, onde conviveu com os colegas Paula Ney e Silva Jardim, que futuramente se destacariam na literatura, no Direito e em lutas sociais. Entre 1878 e 1882 estudou na Faculdade de Direito do Recife, onde fixou residência. Tão logo bacharelou-se, destacando-se como professor de Filosofia, concursado na Faculdade em que estudara na capital pernambucana,  logo fezendo jus à respeitada figura do meio jurídico. No Ceará, o Comendador Accioly, a fim de acalmar as tensões políticas, o convidou para a presidência do Estado. Negou, bem como para senador e deputado; também aos convites dos presidentes da Repúbica Hermes da Fonseca e Washington Luís, para ministro do STF. Contentou-se com o cargo de consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores após convite de Barão do Rio Branco, o que lhe valeu também vaga de professor de Legislação Comparada no Recife. Mas aceitou um trabalho solicitado pelo presidente norte americano, Robert Hoover, redigindo um projeto para a Corte Permanente de Justiça Internacional. Entretanto, para lá não foi discuti-lo, afinal jamais faria uma viagem internacional.

 Proclamada a Republica, em 1889, secretariou o Dr. Thaumaturgo de Azevedo, o primeiro presidente do Piauí, seguindo adiante para Fortaleza como deputado constituinte.



 Nascimento do Código Civil Brasileiro



 
Faculdade de Direito de Recife
Em 1899, durante o governo de Campos Sales, o então Ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, seu colega de faculdade, o incumbiu de redigir um projeto de Código Civil. Em seis meses teria que apresentar um trabalho de aprimoramento do contexto social, de forma liberal e equitativa. Assim o fez, e assim foi aplaudido mundialmente. Após dezessete anos de discussão, o mesmo entrou em vigor em 1 de janeiro de 1917. Criou normas que buscavam a igualdade social, quebrando as antigas e injustas que distanciavam as classes, uma vez privilégios das classes sociais mais abastadas, assentando as bases de uma filosofia jurídica dos grandes revolucionários das ciências. Para Clóvis Beviláqua, a filosofia geral é a síntese mais elevada do saber humano, pois ela generaliza, unifica e completa a natureza harmônica de todas as ciências. O Direito como ciência estuda o homem em suas relações mutuas, mas como fenômeno aparece na sociedade humana como consagração da necessidade da vida em comum, e como deixou claro, “a filosofia jurídica traduz um grau superior na evolução das ciências do Direito”.


 Famoso e humilde



 No que pese uma vida dedicada ao ensino e de consultorias, Clóvis Beviláqua não enriqueceu financeiramente. Não importando o grau da personalidade dos solicitantes, desde que chegara ao Rio de Janeiro, em 1906, cobrava o mesmo valor pelos pareceres, inferiores aos dos colegas. Conforme o jornalista do Flan, Francisco de Assis Barbosa, “não ligava para dinheiro. Excetuando o “Código Civil Comentado” e “O Direito das Coisas”, vendeu a propriedade de todos os livros, a maior e mais completa obra que um jurista produziu em língua portuguesa. Tudo por uma quantia irrisória”. Das duas obras, aos cuidados da Livraria Francisco Alves, e de uma pensão paga pelo governo, sustentavam-se as filhas do jurista. Ambas sequer possuíam emprego, assim como de vida humilde eram seus parentes no Ceará. A própria casa da família, na Rua Barão de Mesquita, 500, foi adquirida através de um empréstimo na Caixa Econômica, “facilitado por uma entrada proveniente de subscrição popular da Sul América”. Ali o intelectual dedicou a outra tarefa que amava: cuidar de animais. Abraçava-se aos gatos, cachorros, dava milho aos pombos sentado na sua cadeira de balanço, nas suas mãos.  E não esquecia dos demais, pois alimentava até as aves  dos vizinhos. Interessante, criava galinhas mas não as matava, afinal possuíam nomes, eram como membros da família.


 Maior civilista do País sem casaca


 Tamanha modéstia vinha de longe.  1916 era o ano do centenário de nascimento do jurista baiano Teixeira de Freitas. Bateram em sua porta. Era seu amigo Edmundo da Luz Pinto, presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Direito do Rio de janeiro, que o convidara para fazer uma conferência sobre o seu colega centenário. Agradeceu, mas não poderia ir porque não possuía uma casaca. O outro tratou de ir atrás e conseguiu a roupa, alugada na Casa Storino, e para a concorrida sessão, no dia 10 de agosto, compareceu ao Teatro Municipal. O imponente monumento da cultura nacional viveu um momento ímpar. Da mesa, da qual presidia, o famoso jurista Rui Barbosa, conterrâneo de Teixeira, o apresentou: “Dou a palavra ao maior dos nossos civilistas vivos para falar sobre o maior dos nossos civilistas mortos”. Fez a conferência, silenciando o prédio, lotado por estudantes. Foram tantas as palmas que até Clóvis Beviláqua as bateu pensando dirigir-se ao colega baiano.


Defensor da mulher. Aliás, das mulheres.



 Contudo, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, Clóvis Beviláqua, membro da Cadeira 14, teve um desgosto que o fez se afastar em definitivo da casa. Em 1930, sua esposa, a escritora Amélia de Freitas Beviláqua, inscreveu-se para a vaga de Alfredo Pujol. Ela já bem conhecida, já que, a contragosto dos imortais, acompanhava o marido nas sessões. Entretanto, acabou rejeitada após o presidente Aloysio da Costa colocar em votação, tendo como motivo a negativa ao sexo feminino possuir assento na Academia, o que só viria a ocorrer em 1977, com Rachel de Queiroz. Em reação à negativa, bradou em boa voz o esposo inconformado: “ Lá fora deixo o meu chapéu e a minha bengala. Onde minha mulher não pode entrar eu também não entrarei!”. O casal se conheceu durante os estudos no Recife, ela culta, piauiense, filha de desembargador, escritora desde a infância, e que teve o companheiro como parceiro em livros.


A família


 
Funerais do jurista no Campo Santo, Rio (Diários Associados)
Após a sua morte, em 26 de julho de 1944, as filhas, Dóris e Violeta, prosseguiram a tarefa de zelar os livros dos pais. Superando 10 mil volumes, com certeza a maioria voltada ao Direito, estragando-se na umidade e na precariedade do espaço, a biblioteca de Clóvis Beviláqua foi pretendida pelo Estado a fim de enriquecer os arquivos  Ministério das Relações Exteriores. Dóris Beviláqua, entretanto, recusou não apenas essa oferta como outras: “Não quero que mexam em nada. Guardarei os livros de papai e mamãe aqui mesmo. Depois da minha morte e das minhas irmãs, então sim, a biblioteca ficará para os estudantes pobres. Papai tinha horror em pensar que os seus livros seria postos em leilão. Lembro-me que ele ficava triste com o anúncio dos leilões de bibliotecas particulares no Jornal do Comércio”.


A gratidão da sua terra




JK no Ceará. (Correio do Ceará, 1965)
No dia 3 de agosto de 1965, o presidente Juscelino Kubitschek, dentro das comemorações do centenário de nascimento do jurista cerense, esteve em Fortaleza, inaugurando o Hospital das Clínicas e recebendo o título de Doutor Honoris Causa da UFC. E nos dois dias posteriores eventos ligados ao Direito, culminando com um recital na Concha Acústica da UFC com os pianistas cearenses Jacques Klein e Cesarina Klein. Parecia que toda a cidade encontrava-se do lado de fora em todas as ocasiões.



 
Fortaleza, 1965. Inauguração da estátua. (Unitário)
Às 9 horas do dia 11 agosto de 1965, Dia do Jurista e do estudante, foi inaugurada a sua estátua na praça ao lado da Faculdade de Direito. Discursaram Eduardo campos, presidente da Associação Cearense de Letras, e Luís Cruz de Vasconcelos, diretor da Faculdade, diante de incontável número de estudantes e populares. A estátua do ilustre cearense surgiu a partir da iniciativa do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua e do jornalista e escritor Pantaleão Damasceno, dos Diários Associados, com uma campanha do jornal Unitário em busca de apoios, resultando numa comissão que foi ao encontro das autoridades. Em 1963, o governador Virgílio Távora sancionou projeto de lei do deputado Themístocles de Castro e Silva, disponibilizando o valor de CR$ 2 milhões para a sua construção, uma dívida do cearense para com seu conterrâneo.


       

                                                                                                            J. Lucas Jr


 Fonte: Pantaleão Damasceno (Jornal Unitário), Jornal Correio do Ceará e Jornal Flan.




Rio de Janeiro. O jurista com a esposa e filhas. Lendo, Florisa, falecida em 1945. (Álbum de família)


Biblioteca: Violeta e os amores de Clóvis Beviláqua. (Flan)