Fortaleza, julho de 1930. A um ano e seis meses da inauguração, o jornalista Audifax Mendes e amigos visitam, entusiasmados, as obras do maior edifício da cidade, ainda sem denominação, ou seja, carecendo da informação de que seria um hotel. Entre as curiosidades da vista a partir do terraço, a cor vermelha dos imóveis no entorno do Castelo do Plácido; e que foi um dos prédios usados para aguardar, no dia 23 de maio daquele ano, o dirigível Graff Zeppelin que não passou, constituindo-se na maior frustração da cidade até então, além da vista da "silhueta dos cimos da Serra de Baturité".
Arranha Céu
Se algum prestígio tivesse junto às autoridades que mais prezo, as eclesiásticas, pediria perdão hoje, a quem de direito, por ter andado, ontem, por cerca de meia hora, com a cabeça no ar. Tal qual o meu amigo padre Dubois fez, há pouco tempo no Pará, quando, pela primeira vez, subiu num aeroplano.
É que, realmente, numa ascensão ao arranha céu que o sr.
Plácido de Carvalho levantou, ali na Praça, vale por um esplêndido alheamento
às coisas que lidamos diariamente, neste solo velho, batido e rebatido. Vale, a
seu modo, por alegres momentos de cabeça no ar.
Natale Rossi, a quem Deus conserve, jovial e simples, entre
os imortais da Academia Glória, foi quem me deu o ensejo de galgar os 167
degraus dos nove pisos do imponente edifício.
Fiz parte, com desvanecimento, de ótima comissão: dr. Mozart
Pinto, no seu porte cavalheiresco e esgrouviado; e o dr. Edgard Arruda, bondade
esfuziante e estrênuo defensor dos magnos interesses da Light, um jovem
clérigo e o velho caboclo que a Providência me deu por extremoso e honrado
genitor. Dei-me por mui bem pago pela ausência que fiz, ao amplo helveder,
quando a haute gomme citadina ali acorreu para admirar o Zeppelin que
não passou.
Examinei tudo, embarafustei pelos corredores, revistei os
andaimes. Experimentei as instalações, perguntei as medidas e corri, lesto,
pelas escadarias que, brevemente, terão trabalho folgado, ante os dois
possantes elevadores que hão de varar, de enfiada, o edifício.
Mas o que, de tudo isso, com maior insistência, ficou na
minha retentiva foi a magnífica vista do conjunto da nossa capital. Uma joia de
alinhamento, parece que as ruas principais foram feitas, uma a uma, sob as
vistas de meticuloso e competente urbanista. Diante daquele panorama, em que
Fortaleza surge de tufos de verdura, banhada, ao largo, pelos mares bravios,
não me pude conter que não bendissesse o orgulho dos seus filhos por uma cidade
nova, simétrica, semelhando a um xadrez de ruas longas e cuidadosamente
alinhadas.
O sol, no acaso, descambava por detrás do Patrocínio, lançando
sobre a Av. Demosthenes Rockert as brandas tintas da saudade de um dia feliz.
Além, o vulto negro das Oficinas do Urubu. Depois as serras: Juá, Maranguape,
Pacatuba e, num fundo de uma espessura longínqua, a silhueta dos cimos da
Baturité.
Na cidade, tudo parecia pequeno e esquisito. As igrejas
pontilhavam, com mais saliência, o casario baixo. O quartel da polícia, o
Coração de Jesus, o trecho da Estação...O Benfica, as torres de Parangaba...Emergindo de uma rebolada imensa de verdura, o bairro do Outeiro, o
“nosso aristocrático bairro”, como diria o dr. Mozart. As torres góticas do
Pequeno Grande desafiavam a preferência do mais exigente apreciador de estilos.
A torre da residência do sr. Plácido de Carvalho assomava,
de longe, deslindando-se da casaria vermelha do entorno. Uma delícia. O Mucuripe,
deslumbrando os que mais conhecem a terra, emprestava ao quadro o tom de poesia
indescritível, com as manchas claras dos jangadeiros, de velas pandas, cruzando
o mar.
À energia e à pertinência de Natale Rosso, o único engenheiro
do arranha céu, Fortaleza deve esse amplo terraço, sustentado por oito andares,
com dezesseis metros de largura por cinquenta de comprimento, que brevemente
será inaugurado.
Fadado a emprestar à cidade maior prestígio à civilização, só
uma coisa há de se temer: a sua aplicação, que não vá incorrer no in vanum
laboraverunt de que fala a Escritura.
Antes, de encerrar, permita-me sr. Alvaro Weyne (prefeito),
que lhes fação presentes as observações que me foram feitas: o conjunto de
Fortaleza, alinhada e distineta, corre perigo com as edificações de areias. A
Rua da Glória está quase fechada, a Praia de Iracema já destoa de um quadro verdadeiramente
citadino, e os fiscais de edifícios parece que não andam como deveriam.
Feito o parêntese, só me resta agradecer ao amigo Natale,
culpado dessa meia hora de cabeça no ar. Dei-me por feliz, muito feliz por ter
atraído bons amigos naquele ponto ideal.
Audifax Mendes. Jornal O Nordeste
Obs.
Natale Rossi, cunhado de Plácido de Carvalho, projetou o prédio.
Patrocínio: Igreja do Patrocínio.
Av. Demósthenes Rochert: Av. Francisco Sá.
Rua da Glória: Rua Rodrigues Junior.
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Foto: O Povo, 1981. |
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