Jornal Libertador, Fortaleza CE, 1881
A Sorte dos Negreiros
Corria o ano de 1820. No local
onde hoje se ergue o sobrado do coronel João Antônio Machado, na antiga rua de
Soares Moreno, hoje do Major Facundo, existia outro de simples aparência e que
fora demolido pelo coronel Conrado Niemeyer, presidente da comissão militar responsável
pelo julgamento dos comprometidos pela malfadada Confederação do Equador, e
que, a pedido do proprietário, traçara o plano da construção do mencionado
sobrado.
Chamava-se Pero Lopes o dono
do imóvel demolido. Homem de 50 anos, alto, bem apessoado e chefe de numerosa
família. Cinco robustos rapazes e uma menina de 15 anos, linda como uma criação
grega, de olhos negros e encantadores, que fazia a alegria daquela casa. O
velho vivia feliz cercado dos seus e pouco lhe importavam as desgraças da
humanidade.
De pobre, adquirira uma
fortuna com o comércio de escravos, tornando-se, em poucos anos, senhor e um
nome respeitável. Mesmo com alguns sustos com cruzeiros ingleses que perseguiam
seus navios e negreiros, em combates longe da costa africana, deviam a salvação
ao desespero da fuga e principalmente à proteção da noite.
Era astucioso e sabia fazer
negócios. Mesmo os que lhe censuravam às escondidas, teciam-lhe elogios e
honras quando em público aparecia. O poder do ouro. Com uma fortuna de oito
contos, mas seus amigos e admiradores a avaliavam em dois mil contos,
desmentido pelo inventário pessoa. Mas não se desanimava diante das
dificuldades em continuar com o tráfico com os bons vendedores da África, empreendendo
outros modos no mesmo negócio.
Equipou um navio veleiro e
encheu o porão de escravos, ordenando que demandasse os portos do sul do
Brasil, onde maiores fortunas coroariam a sua empresa com felizes negócios. No
fim de quatro meses, ancorava junto ao forte de São Thiago, hoje de Nossa
Senhora da Assunção, o Feliz Empresa com a segurança de ótimos resultados. Pero
Lopes dobrou a partida e o navio seguiu.
Aumentava de modo espantoso a
sua fortuna, com o traficante começando a sonhar com as glórias de um título
que mais o nobilitasse, embora não se vendessem por tão baixo preço, como hoje,
aquelas distinções. Mas ambicionava ser o primeiro titular desse belo torrão: “Ora,
cinquenta contos não me fazem diferença, e de mais a província tem muitos
negros para recuperá-los em pouco tempo.
E a casa da sua residência era
o bazar onde compravam-se e vendia-se aqueles infelizes após minucioso exame de
todos os membros, principalmente os dentes, precisos para melhor venda, a modo
dos ciganos, no ato da compra de suas cavalgaduras. Exames que muitas vezes
terminavam pelas lágrimas das escravas ao verem expostas, ao olhar de um
cirurgião desalmado, seus corpos palpitantes de vergonha. Estipulados os
preços, eram atirados ao fundo de um armazém, sem que deles se cuidasse mais
até a próxima viagem do Feliz Empresa. Por meio desse comércio lucrativo, primeiro
no mundo, duplicava a riqueza de Pero Lopes.
Uma tarde, a menina Eugênia
entrou no escritório. Aproximou-se, numa atitude grave, e tentou falar, mas o
receio embargou a sua voz.
- Então, o que há? Parece que
me vem pedir o consentimento para casar com o filho de Luiz Rodrigues?
Luiz Rodrigues era outro
empenhado no mesmo negócio.
- Não, ainda não penso nisso.
Venho lhe fazer um pedido que há muito me ocupa o espírito.
- Fala, sou todo ouvidos.
- Venho pedir-lhe para deixar
esse negócio de escravos que tanto me confrange o coração. Não sabe, no fundo
da alma, quando vejo aqueles desgraçados enfileirados como uma manada que levam
ao açougue com os olhos rasos de pranto. Separam-lhes dos entes que lhe são
mais caros na vida, sem a mínima compaixão dos seus sentimentos para serem
atirados ao porão de um navio e depois vendidos em praça pública. Erguem os
olhos para o céu como última esperança e vão ao caminho do desterro sem uma palavra
de consolo à sua desgraça. Como que presinto-lhe na expressão humilhada de uma
súplica vingança.
Pero Lopes escutava com o
sorriso frio do homem afeito ao crime.
Eugênia continuou:
- Tenho pressentimento de uma
grande desgraça e até sonhei, há dias, que o via reduzido à condição de
escravo.
O pai prorrompeu numa estridente
gargalhada que fez Eugênia recuar um passo.
- Por Deus, meu pai, não ria.
Meu coração é muito sincero e poucas vezes me tem enganado.
- És uma toleirona, criança!
Não vês que, com uma fortuna como a minha, poucas vezes se naufraga? Escuta,
não te arreceies, que venhas deixar de ser a moça mais rica e educada desta
capital.
Continuou:
“Hoje é muito difícil perder-se de um dia para outro um capital de quase mil contos, empregados em diversas empresas lucrativas, Se perde-se em uma, ganha-se em outra e vai-se sempre em regra de progressão. E isso é oriundo da tua imaginação exaltada.
Compadece-te dos escravos, mas
ignoras o que é escravo. Escravo é coisa e não pessoa, e alguém já provou
exuberantemente que ele não tem alma. Ele existe desde o início do mundo,
escravatura mantida pelas leis da Assíria, da Pérsia, da Índia, da Grécia e de
Roma. O vencido nos combates era o escravo muito pior dos que os nossos, porque
tinha consciência dos seus atos, e os africanos nem ao menos sabem distinguir o
bem do mal.
Apanhados no centro da África,
vivendo de insetos e raízes, ignorantes dos gozos da civilização, são até
felizes nos serviços de nossas lavouras e de nossas cozinhas. Não te incomodes
com as lágrimas desses animais bípedes e lembra-te que os crocodilos também
choram”.
- Mas é força confessar que é
repugnante esse comércio de carne humana à luz da civilização, e a Inglaterra
prova-o, no sobejo de guerra, que tem feito e continua a fazer nos navios
negreiros.
- Qual! A Inglaterra inventou
esta história mas seu fim é outro. Engaiolou Napoleão em Santa Helena e vai
destruindo o poderio da França sobre os mares. Esta é que é a história, ela que
não se importa com negros.
Eugênia não deu palavra, tanto
a tinha contrariado a contestação.
Pedro Lopes ergueu-se, beijou
a filha na fronte rubra de pudor e saíram do escritório.
Meses depois, encorava no
porto o “Feliz Empresa”, navio negreiro que, pelas contas, dera mais vantagem
que a viagem anterior. Em poucos dias a províncias de São Paulo compara-lhe
todos os escravos por um bom preço, e fizera encomenda de maior remessa. E com
as gordas gratificações, o capitão também lucrava. À vista disso, atulhados o
porão e o convés de escravos, o navio largou o porto bafejado por propício
vento, desaparecendo pouco depois no horizonte.
Exultado de contentamento,
diante de excessivo lucro do seu negócio, Pero Lopes não quis ver a filha nesse
dia.
- Bem, muito bem, e minha
filha vem me falar em repugnância. Repugnância teria eu se a visse casada com
um desses pobretões que só falam em emancipação e que nada possuem além de
alguns livros velhos, a evocar sentimentos que não possuem. Um negócio tão lícito
como outro qualquer. Eugênia já não é uma criança da Rua Soares Moreno.
Pálida, triste e sem forças,
poucas vezes aparecia, ocultando-se no fundo do seu quarto nos dias de
embarques de escravos, e as pessoas notavam grande diferença em suas feições,
cuja tristeza maior a venda, para São Paulo, da escrava que amamentara. O motivo
seria o gênio forte da mãe, que não sabia ser contrariada.
Que saudade tinha da pobre
Luíza! Adoecera até ao estado melindroso de causar receios, com delírios de
febre, chamando o nome de Luíza, despertando banhada em lágrimas. Mas o pai,
mesmo condoído por esse estado, não achava motivo para justificar tamanho sofrimento.
Tinha alma de ferro. Nunca a lágrima, o soluço ou a exclamação dolorida
levaram-no à comoção. Era moldado aos modos dos fazendeiros do sul.
Porém, estava próximo o dia do
desgosto, a arrancar a primeira lágrima de Pero Lopes. A enfermidade de Eugênia
progrediu rapidamente até que ela exalou o último suspiro, calma e serena como
a imagem da resignação. E embora tenha chorado muito, logo a esqueceu.
Mas o destino fez chegar as
contrariedades, acompanhadas de um cortejo de desgraças. Pouco depois, chegou a
notícia do suicídio do filho mais velho, na grande cidade de Paris. A ele,
comprometeu boa parte da sua fortuna para desperdício em jogos e orgias. Dessa
vez, o pai chorou com mais efusão e alarido, quando, do fundo da alma,
bradava-lhe uma voz que o pranteava com mais um prejuízo, maior que a perda do
filho.
Os negócios da República do
Equador trouxeram-lhe um novo golpe na fortuna de Pero Lopes. Em desespero,
desanimado, clamava por todas as forças da alma para reagir contra os contratempos.
Ficou pensativo e acabrunhado.
Soube que um filho, que andava
para o centro da Província, com grandes somas para compras de escravos, fora
assassinado pelas tropas de Tristão Gonçalves, no lugar Boqueirão, e o dinheiro
extraviado nas várzeas do Rio Jaguaribe.
Por vezes a mulher o encontrou
no escritório com a cabeça pousada sobre a borda da mesa, desesperado e
adormecido. Despertava espantado, levantando-se e saindo docilmente. Aquele
homem de ferro, tão altivo na opulência, caia pouco a pouco no abatimento, tal
que era preciso a mulher encorajá-lo para refletir um instante. Banhado em suor
frio e com os membros trêmulos, vivia triste e pouco falava.
Olhos em pranto em pensar na
fortuna que ganhara, quando o presidente da comissão militar, Conrado Niemeyer
instalou inquérito sobre os sediciosos da República do Equador. E mesmo
comprometido nos negócios, para evitar nova morte, providenciou a fuga de outro
filho para os Estados Unidos, levando consigo todo o dinheiro que pudesse
dispor até que se restabelecesse a paz na província. Partiu Luiz para a Grande
República, deixando seu velho entregue à desesperança e à morte.
Apesar, das contrariedades,
Pero Lopes não deixava de comprar escravos e remetê-los para São Paulo, embora
há dez meses não chegara o Feliz Empresa. Uma situação desanimadora, somente
com a esposa para encorajá-lo. E lembrava do que dizia a filha, tentando
esquecer o terrível pensamento. Pois tinha medo de estar só, tudo lhe
assustava. Quando descia para o escritório, a mulher o acompanhava. São assim
todos os malfeitores da humanidade.
Chegou, afinal, o ano de 1825,
com a seca assolando a província e não poupando as suas propriedades.
Despovoaram-se as suas inúmeras fazendas, deixando grande prejuízo e
provocando-lhe mais fúria, como maltratar, com palavras injuriosas a esposa e
evitar visitas de amigos. Tinha o desespero das feras que vê fugir-lhe a presa
das garras.
Mais tarde, ávido por
encontrar informações do seu Feliz Empresa, lia os jornais quando se deparou
com a notícia do naufrágio do Waldek próximo às costas da Flórida. E o exemplar
caiu-lhe das mãos: “Estou desgraçado!”, prorrompeu em soluços. “Perco tudo que
possuo e a miséria bate em minha porta”. “Oh, que horrível! É possível que o
destino ou a fatalidade escarneça tão cruelmente em mim a ponto de dissipar uma
tão sólida fortuna?”
Ergueu-se num salto e começou
a andar precipitadamente do extremo a ouro da sala, articulando em altas vozes
palavras inteligíveis e a torcer as mãos em atitude assustadora. Apesar dos
conselhos da esposa, respondia: “Qual paciência, senhora? Estou desesperado!”
Só me resta pedir esmolas a esses miseráveis que tanto ofendi com o fausto da
minha grandeza.
“Não blasfemes, Pero! Os
pobres também são felizes e talvez mais felizes do que...”
- Cale-te, mulher dos diabos!”
Possesso, Pero Lopes rangia os
dentes e arrancava os cabelos. Dizia-se endoidecido tão alteradas estavam as
entranhas. Soltou uma horrível imprecação e caiu no chão.
Levaram-no para o leito e
horas depois deu sinais de vida. Com os olhos injetados de sangue, febre que o
devorava, rolava de um lado para outro, pronunciando palavras que mais pareciam
uivos. Falava “Feliz Empresa”, “Waldek”, “mil contos” e outros que constituíam sua
vida. Horrível vê-lo em constante ansiedade, cerrando os punhos, em difícil
respiração batendo as pernas, como procurando saltar das órbitas. Espumando um
baba esverdeada, em meio de gritos medonhos, expirou ao fim de trinta dias.
E o Feliz Empresa nunca mais
voltou. Seu capitão, após boas vendas de escravos em São Paulo, fugiu para
Portugal, extraviando uma fortuno com o sangue de milhares infelizes.
Aqui (em 1881) talvez ainda
exista quem tenha conhecido Pero Lopes, que acabou seus dias na miserável casa
da Rua do Corrente, hoje Conde d’Eu, em frente ao gradil do Palácio, esquina da
Rua da Assembleia, cujas ruínas ainda se veem. Meu avô, que com ele entreteve relações,
contou-me esta história que transmito aos leitores.
Nota do blog: O autor cita, no primeiro parágrafo, um
imóvel onde se ergueu o edifício do Excelsior Hotel, cuja rua se chamava Soares
Moreno antes da denominação de Rua da Palma. E, no último parágrafo, o local
onde Pero Lopes faleceu: Rua São Paulo com Conde d’Eu, no qual José Carneiro da
Silveira ergueu o Ed. Carneiro, sede da sua firma de automóveis GM, a Silcar.
Infelizmente não informa o nome do autoe do significativo texto.
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