O QUE CERTOS PRÉDIOS RECORDAM
Jornal O Estado. Fortaleza, 5 de dezembro de 1937 - Por
HENRIQUE DA VEIGA
“Não se embarca mais escravo!” - Morada da Justiça - “Forno da Padaria” -
Telégrafos e Telefones - A Tragédia do Bacamarte - Já foi Palácio - Onde nasceu
o gênio da “Electra” - A Famosa Botica.
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Matéria de Henrique da Veiga - 1937 |
Não faz um mês, Felix
Lima escreveu em “Caras e Caretas”, de Buenos Aires, interessantes recordações
de “La Calle Larga de La Recoleta”, um encanto de reminiscências da antiga
capital portenha. São gratas essas recordações. Revivem locais, figuras, fatos
do passado, às vezes de decisiva influência no futuro. Em todos os países,
mesmo ante o imperativo do urbanismo iconoclasta, procura-se, quanto possível,
respeitar lugares, prédios, objetos ligados à história. Na França, dizem que se
fez uma curva na rua para evitar o decepamento de uma árvore, sob cuja copa o
autor de “Os Miseráveis” costumava escrever. Na Inglaterra, a casa em que
Newton nasceu foi demolida, mas no local ficou uma placa lembrando a “Newton House”.
Assim por diante...
Nós, também, da
relatividade histórica da vida fortalezense, temos alguma coisa que deve ser
lembrada, como por exemplo:
TEATRINHO DO GRITO
LIBERTADOR
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1881 - No antigo Teatro São José, o grito pela abolição |
Essas casas
conjugadas na rua Senador Pompeu, n°s 941 e 953 tiveram a sua época de ouro há
meio século, quando da eclosão do grande movimento cívico da abolição que,
sacudindo a alma nacional, de norte a sul, conquistou para o Ceará um lugar de
relevo na História. Nessas duas casas fundou-se o teatrinho “São José”, onde
foram levadas à cena peças que faziam vibrar de entusiasmo os nossos maiores,
como “Os Sinos de Cornevile” e outros. Não obstante, as pinturas novas
conservam os antigos característicos arquitetônicos, e uma delas, a de n° 941,
ostenta o mesmo portão largo, de estilo, por onde passou toda uma geração
vibrante e patriota, que se recreava com a arte de Talma, desconhecendo os
truques do cinema e a história, nem sempre edificante, dos “astros” e das
“estrelas” pagos de Hollywood. Não guarda a crônica desse teatrinho, entretanto,
senão um fato cujas consequências, do ponto de vista sócio-político-econômico,
foram deveras marcantes na vida cearense.
Ali, na noite de 26
de janeiro do 1881, José do Amaral e outros próceres abolicionistas firmaram um
pacto, que foi o passo decisivo para a repressão à escravocracia, de que “no
porto do Ceará não embarca mais escravos!” É posto logo em prática, logo na
manhã seguinte, pelo grande chefe do movimento manumissor , com o valioso
concurso de Nascimento: José Napoleão, José Barros Silva e outros, segundo reza
a Ata da Sessão Magna da Perseverança e Povir”. Foi, pois, dessa casa que
partiu o grito de rebeldia à negregada instituição legal de se comprar e vender
gente como se compra e vende irracionais.
E a propósito de
teatro e abolição, justo é assinalar, também, a existência de outro - o
teatrinho, “S. Luís”- cuja sede eram uma casinha onde é hoje a residência do
sr. Ulisses Borges, antiga do dr. João Moreira, esquina vis-à-vis com a Santa
Casa. Ali, a ideia manumissora teve, igualmente, impulsos precipitantes, e tal
era o entusiasmo que a peça “A Cabana do Pai Tomaz”, encenada pela Companhia
Guimarães, teve 52 apresentações! A separação das casas foi feita pelo seu
proprietário, o Barão de Ibiapina. Assim divididas rendiam mais...
O Palácio da Justiça
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Trib. de Relação |
O Tribunal da Relação
sempre funcionou em casa assombrada. Instalado a 3 de fevereiro de 1874, no
Paço da Assembleia Legislativa, passou a funcionar no sobrado n° 28 da rua
Senador Pompeu, transferindo-se a 17 de abril de 1875 para esse que aí está, à
rua Major Facundo 156, onde é hoje, no baixo, a casa comercial de J. Felinto
& Cia, e nos altos uma pensão. Nesse velho sobrado, de propriedade do cel.
José Gentil, o Tribunal esteve por cerca de 40 anos, por ali passando figuras
de alta projeção no mundo jurídico, na Magistratura, no Direito. Verdadeiros
luminares da Ciência de Ulpiano, como o são hoje - vale dizê-lo – os seus
sucessores na distribuição da Justiça. Ali funcionou, também, a Prefeitura.
O telégrafo
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Telégrafos: olhando para a Sé |
A história dos
Correios e Telégrafos no Ceará está resumida numa edição especial de “O
Nordeste” quando da sua inauguração, na Praça Capistrano de Abreu, no majestoso
palácio de cimento e vidro, mandado construir pelo ministro José Américo.
Apesar disso, poucos
se lembram que o telégrafo, inaugurado em Fortaleza em 17 de fevereiro de 1878,
com uma linha para Aracati, o foi nessa casa de esquina da Praça da Sé, onde
hoje funciona um bilhar, a primeira, lado ímpar da rua Castro e Silva, n° 5.
Desse tempo, ainda existe um funcionário, Alfredo Barbosa Leite.
O Forno da Padaria
A casa, à rua
Barão do Rio Branco, sob n° 1001, tem sua história na crônica literária do
Ceará. Foi aí que se instalou e funcionou por algum tempo a mais brilhante,
fecunda e original sociedade de letras do norte do país - a” Padaria
Espiritual”, tão decantada, citada e glorificada através de notáveis trabalhos
de Rodrigues de Carvalho, José Luís de Castro, Ronald de Carvalho, Leonardo
Mota e outros, e vivida ainda hoje na pessoa, por todos os títulos, de Antônio
Sales, que é a crônica, em si mesmo, de todo o movimento intelectual do Ceará
nos últimos decênios. Tinha o prédio o n° 105, e as paredes ostentavam
alegorias com os nomes dos “padeiros”, traçados pelo rutilante pincel de Luís
Sá, o “Corregio Del Sarto” da turma. A venda do “pão” dava para as despesas do
aluguel do “forno”, e o proprietário, o Bruno, antigo dono do hoje Casa Parente
(edifício), por gostar de outras “massas” pôs a Padaria no olho da rua. E a
consciência burguesa, com o automatismo do caiador, fez passar mão de cal pelas
paredes, apagando para sempre a obra de arte e inteligência de Luís Sá. Hoje,
no ano de 1937, o “forno” é depósito de móveis. Mas mesmo assim merecia uma
placa que indique às novas gerações onde nasceu e viveu por algum tempo uma das
sociedades que mais influíram no movimento intelectual do país.
Telefones
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Na antiga Casa Confúcio, 1° telefone |
A 11 de fevereiro de
1883, sendo presidente da Província o depois Barão de Guapará, que, aliás, nada
tem com o peixe, inaugurava-se “a primeira linha telefônica, ficando acertada
entre o estabelecimento comercial de Confúcio Pamplona, à rua Major Facundo 59,
e a casa de José Joaquim de Farias, no largo da Alfândega”, diz o Barão de
Studart e adianta o “ Cearense”: “Por essa ocasião, trocaram-se diversas
felicitações entre negociantes e particulares, tendo funcionado com a maior
regularidade os aparelhos sentados”. Este “sentados” não sei de onde vem, e
quanto à marca dos aparelhos nenhuma linha noticiário da época. O que posso
garantir é que muita gente, ao chegar o auditor ao ouvido e escutar a voz que
vinha lá da Praça da Alfândega, há de ter experimentado a mesma sensação de
espanto de D. Pedro II quando examinava, na Exposição de Filadélfia, o “invento
falante” de Graham Bell. A Casa Confúcio fez, portanto, papel que vai fazer
aquele elegante prédio da Praça dos Voluntários, que, dizem, servirá de testa da
futura Prefeitura. Segundo pude colher, por alguém autorizado, o Confúcio era
ali onde está a casa, também de ferragens, de J. Torquato & Cia.
Facundo
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A residência de João Facundo tornou-se Casa Villar
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Não se pense que vou
tratar da obra de Mitre. Refiro-me ao maior vulto da política provincial
cearense nos primórdios do Império: o major João Facundo de Castro Meneses,
assassinado traiçoeiramente, a tiros de
bacamarte, na noite de 8 de dezembro de 1841, ao que se diz, a mandado da
esposa do presidente José Joaquim Coelho, português que morreu Barão da
Vitória, não sei por que cargas d’água. Sei - e já estive com os volumosos
autos do processo em mãos - que, à boquinha da noite, quando se festejava o dia
de Nossa Senhora da Conceição, na Prainha, Facundo mal chegava à janela de sua
residência, ali onde estão as casas Vilar e Singer, quando o primeiro tiro
roncou. E não dera tempo a indagar da esposa sobra a segunda bacamartada, prostrava-o,
fulminando-o e ferindo a sua mártir companheira. Ao assassinos, Jacarandá e Cia,
estavam escondidos num matagal ali onde é hoje o Banco Caixeiral, mais ou
menos. Nem é bom imaginar o que foi aquela noite sinistra, na pacatez
provincial de Fortaleza de então.
VOVÔ
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Pl. do Comandante das Armas
Prédio histórico |
Esse é o vovô dos
prédios outrora públicos. Vem do tempo colonial e já teve honras de Palácio com
“P” grande. Era ali que residiam ao comandantes das Armas, que é, assim como
quem diz, a segunda pessoa do governo, o comandante em chefe das forças
militares. Um deles foi o coronel Silva Paulet, que traçou a planta de
Fortaleza, substituído em 1824 por famoso português, tenente -coronel Conrado
Jacob de Niemeyer, o carrasco de Pessoa Anta, Bolão, Carapinima e Padre Mororó.
Fica na Praça da Sé, e conquanto esteja com o frontal modificado, todo o resto
fala de três séculos. Hoje, só o Palácio do Governo e a Intendência pegam
parelhas com ele em vetustez e sentido histórico.
O BOTICÁRIO
Antônio Rodrigues Ferreira é um nome que não passará na
história fortalezense tais os serviços prestados à nossa capital, que lhe
prestou a justa homenagem de assim chamar a nossa Praça-coração. Era português, boticário e político, mas, mais político que
boticário. A sua botica era ali onde é hoje a “Farmácia Galeno”, e nessa
farmácia toda noite reunia-se a rodinha - o Banco de então – dos correligionários
gerais. Ficava em frente o célebre “Beco do Cotovelo”, e muitas conversas dos
próceres políticos pegadas do tal beco. Dizem até que, de certa feita, o padre
Verdeixa, disfarçado de vendedor de capim, arreou a carga defronte à rodinha e
ouviu tudo, repetindo no dia seguinte, pelo jornal, as histórias escutadas dos
adversários.
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Rua da Palma (Major Facundo). Olhando para o Beco do Cotovelo, a Botica do Ferreira, depois Farmácia Galeno
Fotos: Jornal O Estado ( de José Martins Rodrigues) - 1937 |