sexta-feira, 13 de maio de 2016

Abolição dos Escravos - Ceará se Antecipa à Áurea


Redenção, Terra da luz
Se a Lei Áurea chegou ao Brasil em 13 de maio de 1888, o cearense diria, com a sua irreverência: “Já veio tarde!”

  No primeiro dia do ano de 1881, dizia o editorial da primeira edição do jornal “Libertador”: “A fera indomável da cobiça humana fez delle a sua victima. Escravizou-o, vendeu-o, torturou-o, matou-o! Um milhão e quinhentos mil desses infelizes, chismados com o nomes de captivos, ainda hoje não respiram livremente na pátria livre”. De um sobrado da praça José de Alencar, em Fortaleza, eclodia o grito cearense pela abolição dos escravos.

 A província miserável, convivendo com retirantes e epidemia de varíola, que matava pobres e ricos, na lembrança da extinção da economia da charque quase um século antes, vinha de um período histórico de seca, de 1877 a 1879, culminando com um prejuízo substancial ao algodão. Aos fazendeiros, por orientação de lideranças conservadoras contra o próprio partido ligado ao Império, aos quais pertenciam os quadros da burguesia dos grandes centros urbanos, arcando com elevados custos dos cativos, restaram de seus intelectuais e comerciantes o surgimento do movimento “Perseverança  e Porvir” (28/09/1879), nascendo dali a Sociedade Cearense Libertadora (8/12/1880), que contava como membros e redatores Manuel Albano Filho, Antônio Martins, Alfredo Salgado, Antônio Bezerra, Justiniano de Serpa, Isaac Amaral, Pedro Borges, Rodolfo Teófilo, Pedro Artur de Vasconcelos, José Marrocos, José do Amaral (vice-presidente) e outros como João Cordeiro, seu presidente, que em seus inflamados discursos exigia juramento pela luta contra o governo, retirando seus amigos da sua dependência, “matar ou morrer em prol da abolição”. E as consequências logo surgiram, pois, nas madrugadas, negros eram soltos às escondidas pelos revolucionários.

Chico da Matilde não era jangadeiro.
Mas tornou-se Dragão do Mar e herói.

  Na esfera “popular”, foi Chico da Matilde, o “Dragão do Mar”, quem deu altivez ao movimento libertário, comandando a famosa greve de 27 de janeiro de 1881, quando a partir de então os jangadeiros se negaram a transportar escravos negros. Custou-lhe danos trabalhistas, embora moralmente um herói, tornando-se um dos maiores nomes do Ceará, pela bravura, amor e convicção aos direitos humanos.

 No dia primeiro de janeiro de 1883, com as presenças de abolicionistas como João Cordeiro, Liberato Barroso, José do Patrocínio, Antônio Tibúrcio, Justiniano de Serpa e Antônio Martins, Acarape (futura Redenção), a cidade dos engenhos de força braçal negra, libertava seus escravos, orgulho da província por ter sido pioneira no Brasil, consagrando-se como “Terra da Luz”.

 A notícia se espalhou pela província, e, embora a resistência persistisse em importantes cidades, os gritos de liberdade bradaram em dois centros escravagistas do dia 2 de fevereiro de 1883. Em Pacatuba, Dr. Rodolfo Teófilo (que na adolescência se dizia "escravo branco"), destacado farmacêutico, que lutou pelo combate à varíola e outras pestes, liderando a "Libertadora Pacatuba", comandou uma grande festa pela libertação dos seus escravos, fato presenciado pelo presidente abolicionista João Cordeiro e pela líder feminista sobralense Maria Tomásia Figueira Lima.



 No dia mesmo, Itapagé, então Vila de São Francisco de Uruburetama, no norte cearense, marcou sua contribuição social com a libertação dos seus 112 negros, felizes com a alforria. A sessão ocorreu na Igreja da Matriz, sendo conquistada mais uma batalha da Sociedade Cearense Libertadora, com as presenças ilustres de José do Amaral, Antônio Martins, Rodolfo Teófilo, José do Patrocínio, João Oto do Amaral Henrique, Felipe Sampaio, Antônio Bezerra, Raimundo Vóssio Brígido e José Marrocos. Vários discursos e cânticos poéticos.

 A caravana seguiu para outras localidades. Como disse José do Patrocínio, "hoje, cada pegada dos Legionários da liberdade é um pedaço de território livre". No dia seguinte partiu para Imperatriz (Itapipoca), onde foi instalada a Sociedade Libertadora de Imperatriz. Em março, seguiram-se Canoa (Aracoiaba), Baturité e Icó; no dia 25 de abril de 1883, Tauá; em maio Maranguape, Messejana (ainda independente de Fortaleza) e Aquiraz.

  Após campanha de arrecadação financeira, na qual as senhoras dos libertadores, e simpatizantes da causa, doavam até suas jóias, Fortaleza foi palco da libertação de seus escravos, no dia 24 de maio daquele ano. Às 12 horas uma sessão magna  no salão nobre da Assembleia Provincial, cânticos dos hinos da "Redenção" (de autoria de Antônio Martins) e de "24 de Maio" pelos alunos do colégio Ateneu Cearense, mais o da "Independência" e o "Hino do Brasil". Entre concorridos oradores, destaram-se as abolicionistas Maria Tomásia e a poeta Francisca Clotilde. Em seguida, na Catedral, Padre Frota abençoou o ato. De lá, uma procissão popular seguiu para o Passeio Público, onde ocorreu uma grande festa.

 Naquele ano de glória para os negros cearenses, outras localidades seguiram a redenção: Soure (Caucaia, 3 de junho), Pedra Branca (8 de junho), Pereiro (27 de setembro), Vila Viçosa (29 de setembro), Canindé (4 de outubro), São Benedito e Ibiapina (11 de outubro), Várzea Alegre (22 de outubro) , Pentecoste (8 de dezembro) e Trairi (31 de dezembro).

 1884 começou com mais libertações: Santa Quitéria, Cachoeira, Aracati, Cascavel, Camocim, Tamboril, Lavras, Acaraú, Morada Nova, Independência, Santana, São Bernardo das Russas e Granja. Mas foi em 25 de março, dia da Anunciação à Virgem Maria, contudo, que a Sociedade Libertadora Cearense coroou seu trabalho com a libertação em todo o Ceará. Um coral formado por quinze mulheres cantou o "Hino da Redenção", novamente no Paço da Assembléia, cuja solenidade deu início às oito horas na Praça Castro Carreira (Estação), com o marco do pavilhão exclusivo para a ocasião. O governador Sátiro Dias, aclamado "sócio-benemérito" da Libertadora, deu a abertura e então o enlaço final, marcado por ovacionados discursos. A festa varou noite adentro na Praça Castro Carreira, numa demostração de sentimento humano do povo daquela Fortaleza de 30 mil habitantes.

"Liberta Fortaleza", por José Irineu Souza (1883)

 Muitos historiadores, porém, contestam o sentido “humano” da "Sociedade Cearense Libertadora", vendo-a como uma ação contra o império, exigindo mudanças econômicas (troca de força de trabalho manual por industrial, capitaneada pela Inglaterra). Para a Professora de História da UECE, Walda Mota, “como os abolicionistas de “Libertador” eram latifundiários e donos de escravos, o discurso era ideológico. A abolição passaria a ser uma “façanha” da classe dominante”. Uma das matérias do jornal (O Libertador), aliás, termina afirmando: “Somos todos irmãos!”. Desse modo, temos, no interior do Ceará, o exemplo de José Facó, que durante as núpcias da irmã, em Tauá, em abril de 1883, no leito de morte, deu carta de alforria a todos os seus escravos “herdados de seus maiores” (Boanerges Facó, no “Unitário”, em 1959).

   No que pesem os feitos, o cearense continua devendo tratamento igualitário em relação ao negro, historicamente marginalizado, isolado da sociedade. A própria Comissão de Direitos Humanos da OAB CE reconhece que é pouco procurada para combater esse tipo de caso homofóbico devido às reações, uma ação que, em caso de confirmação de racismo, pode resultar em pena de quinze dias a três meses de prisão, ou pagamento de multa. Vemos e lemos disposição para enfrentar o problema, mas jamais a solução. Esses seres humanos, que por aqui chegaram trazidos pelo holandês Mathias Beck, em 1649, sofrem as consequências de uma colonização branca, elitista e preconceituosa. E o caso se arrasta diante da sua pouca exploração nas escolas. Sequer possuímos um museu da escravatura, como em Pernambuco.

 Fonte: " A Abolição no Ceará" (Raimundo Girão).

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